Jovens impulsionam reinvenção do ensino superior

Jovens impulsionam reinvenção do ensino superior

Reitores e especialistas de 25 países discutem novas experiências e projetos educacionais

Por Stela Campos – Jornal Valor Econômico

14/03/2024

Existe um movimento que vem forçando universidades em todo o mundo a se reinventar, mudar currículos, infraestrutura e até a governança. À frente dessas transformações, está uma nova geração de alunos, menos passiva, que quer entender a razão de aprenderem algumas disciplinas, qual o sentido e o impacto do que estão estudando para mudar o seu entorno. Eles querem saber como o aprendizado se conecta com o mundo real e se o conhecimento adquirido pode ajudá-los a pensar em soluções para os grandes problemas do mundo.

“Os estudantes se tornaram empreendedores sociais, são ativistas dessas causas e trazem novas iniciativas para as universidades. Da mesma forma, eles estão proativamente moldando seu processo de aprendizado”, afirma Santiago Iñiguez, presidente da universidade espanhola IE. Ele é um dos criadores da conferência Reinventing Higher Education (RHE), que chegou semana passada à sua 14º edição. Este ano, ela foi sediada pela Universidade de Miami (EUA) e reuniu reitores, vice-reitores e especialistas de 40 universidades, de 25 países.

Em dois dias de imersão, foram debatidos os maiores desafios globais no ensino superior hoje, como o uso da IA no aprendizado, a criação de ecossistemas com empresas e comunidades para expandir o impacto dos projetos dos alunos, a dificuldade em prever e desenvolver habilidades que vão fazer diferença no futuro e até como criar incentivos para que os educadores sejam mais inovadores.

“Vemos muitos professores empenhados em fazer e publicar pesquisas científicas para poder crescer na carreira acadêmica. No fim, são estudos que acabam sendo pouco engajados com a comunidade”, diz Annelien Bredenoord, reitora da Universidade Erasmus de Roterdã, na Holanda, que tem 35 mil alunos e 6 mil funcionários, entre professores e pesquisadores.

Bredenoord, da Universidade Erasmus: professores mais livres para criar projetos — Foto: Divulgação/Giancarlo Silva

Para que o crescimento na carreira acadêmica não esteja atrelado somente à evolução em pesquisas e publicações, a escola criou um mecanismo de avaliação que permite com que o professor opte por focar em dar aulas e mesmo assim consiga evoluir na profissão. “Queremos que eles façam o que mais gostam e não sejam preteridos por isso”, afirma a reitora.

Ben Nelson, do Projeto Minerva: ensinar as pessoas a cooperarem entre si — Foto: Divulgação/Giancarlo Silva

Essa reforma nas avaliações dos professores, segundo ela, é um movimento que hoje envolve muitas instituições de ensino dos países da União Europeia. Estando mais livres para investigar, sem a obrigação de publicar pesquisas para ganhar graduações no mundo acadêmico, diz Bredenoord, os professores podem construir projetos em sala de aula e ter uma maior conexão com os alunos criando ações que tenham impacto social onde vivem.

Carell, da Universidade Minnesota: desafio para alunos cocriarem novo curso — Foto: Divulgação/Giancarlo Silva

Um dos maiores desafios dos professores, destacado por Eric Mazur, professor de física na Universidade Harvard (EUA), é criar uma motivação intrínseca no alunos pelo conhecimento. “Apenas apresentar um conteúdo não causa entusiasmo, é preciso criar projetos conectados com a sociedade, que despertam empatia. Também temos a obrigação moral de educar as pessoas para trabalharem melhor juntas”, diz.

Para ele, a sala de aula tradicional restringe as oportunidades de aprendizado. A possibilidade de explorar o ensino síncrono e assíncrono on-line e combiná-lo com o trabalho em grupo na sala de aula é uma vantagem que a tecnologia trouxe, mas é preciso ir além. “Sou contra palestras, exames, acho que a grande reinvenção do ensino superior não está em adotar novas tecnologias, mas em repensar a pedagogia.”

Para Ben Nelson, fundador da Universidade Minerva, com sede no estado da Califórnia (EUA), considerada uma das mais inovadoras do mundo, o ensino deve garantir que o maior número possível de pessoas tenha a capacidade de pensar sistematicamente por que algo acontece. “Elas precisam aprender a cooperar entre si para que possam trabalhar em decisões muito difíceis e compreender o impacto delas, não apenas sobre si mesmos ou sobre a sua comunidade, mas sobre o mundo, que é a sua casa”. Desde 2020, Nelson é responsável pelo Projeto Minerva, que vem redesenhando o currículo e reinventando metodologias de ensino em 16 universidades pelo mundo.

Thwala, da Universidade African Leadership: um ano para o aluno descobrir sua missão — Foto: Divulgação/Giancarlo Silva

Na Universidade de Miami, o projeto Minerva ajudou a criar um programa interdisciplinar que reúne inovação, tecnologia, programação e design, chamado “Educação para a Vida”. Do outro lado do mundo, a Singapore Management University (SMU) criou uma graduação de estudos integrados, em que os alunos abordam de forma interdisciplinar os desafios do mundo que consideram mais relevantes. Eles podem desenvolver a própria especialização, por exemplo, em envelhecimento sustentável ou mobilidade social, unindo estudos de sociologia, psicologia, políticas públicas, economia, aspectos jurídicos e regulatórios, o contexto histórico e de inclusão digital.

Criar novos programas e mudar o currículo todos os anos deve ser uma regra de ouro para as universidades, afirma Santiago Iñiguez. “Pelo menos, 20% a 30% do que se ensina deve ser repensado todos os anos, assim, ao longo de três anos, tudo vai ter sido revisto”, explica. Criar mecanismos para ouvir o que o mercado espera dos futuros profissionais é essencial para que essas adaptações façam sentido.

Lori. J. Carrell, reitora da Universidade de Minnesota Rochester (EUA), conta como fez para redesenhar as competências dos recém-formados, promovendo um desafio na área de saúde para que os próprios alunos participassem do processo. “Eles conversaram com os administradores de uma clínica local e cocriaram com os professores um curso mais curto e mais profundo para a escola, alinhado com o que os empregadores queriam”, explica. Por participar do desafio, os alunos ganharam créditos em múltiplas disciplinas. A clínica, por sua vez, se comprometeu a incorporar estágios remunerados e a contratar os graduados desse programa. “Foi uma aposta no aprendizado experiencial”, diz.

Pelo menos, de 20% a 30% do que se ensina deve ser repensado todos os anos”

— Santiago Iñiguez, da Universidade IE

Essa experiência mudou a forma como a escola vê as profissões do futuro. “Percebemos nessas conversas com os contratantes que eles descreviam os cargos de uma maneira diferente, buscando pessoas com mais inteligência emocional, competências interculturais, criatividade e pensamento de design”, afirma Carell.

Na universidade Tecnológico de Monterrey (México), o reitor David Garza destacou o projeto Tec 21, onde 50% do currículo dos alunos é composto por desafios experimentais. “As experiências são desenhadas pelos professores junto a parceiros, que podem ser empresas, instituições da comunidade, governo. Não são estágios, eles trabalham, são avaliados e recebem notas da escola”, diz. Outra inovação, explica o reitor, foi montar uma grade flexível para o currículo, baseada em competências. “O aluno não tem definido no primeiro dia de aula tudo o que ele vai estudar nos próximos quatro anos. Disciplinas podem ser acrescentadas. Um aluno de engenharia química, por exemplo, pode querer diversificar seu aprendizado e estudar finanças”, explica.

Um dos grandes desafios das universidades hoje, citado por diversos palestrantes, é lidar com a mudança demográfica dos alunos. Existem mais representantes de uma população não branca, de menor poder aquisitivo, mais velha, mais feminina ou que são a primeira geração da família a chegar a uma universidade. É preciso pensar em inclusão e também em adaptar o conteúdo para contemplar todas essas diferenças. Archan Misra, vice-reitor e professor de ciência da computação na SMU de Cingapura, acredita que a inteligência artificial (IA), ao identificar os diferentes perfis dos estudantes, pode ajudar a aprimorar o aprendizado. “Ela pode compreender o comportamento dos indivíduos e o ritmo de cada um, ajudando nessa diferenciação”, observa.

Para Tales Andreassi, vice-reitor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, a IA no futuro pode ajudar a identificar os gaps de aprendizado analisando, por exemplo, os resultados do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). “Na escola temos 20% de alunos bolsistas que, muitas vezes, acabam desistindo porque não conseguem acompanhar o curso. Existe um gap de formação entre os alunos que vêm das escolas públicas e das privadas, se soubéssemos quais são esses gaps poderíamos trabalhar com algum tipo de reforço logo no início das aulas.”

Só apresentar um conteúdo não causa entusiasmo, é preciso projetos conectados com a sociedade”

— Eric Mazur, de Harvard

É consenso que a IA está na sala de aula e cabe aos educadores ajudar os estudantes a fazer o melhor uso possível das novas tecnologias. Andrea Prencipe, reitor da Universidade Luiss (Itália), diz que o papel dos professores, acima de tudo, é incentivar e deixar os alunos experimentarem. “Uma grande habilidade do ser humano é fazer perguntas”, diz referindo-se ao uso da inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, criado pela Open AI. Os estudantes mais bem preparados só vão se beneficiar da IA generativa se os ajudarmos a entender como explorar melhor as potencialidades da ferramenta. “Para os menos preparados, os resultados são mais imediatos.”

O estudo autodirigido viabilizado pela tecnologia é visto com bons olhos pelos educadores, desde que amplie a visão do aluno para que depois ele divida esse conhecimento com colegas e trabalhe em projetos coletivos. “É importante que o estudante leia livremente, se prepare para as aulas, mas depois ele precisa encontrar o grupo para endereçar suas perguntas. Acreditamos muito no valor do aprendizado em conjunto”, diz Nhlanhla Thwala, vice-reitor da Universidade African Leadership de Ruanda, no continente africano.

Ele conta que na sua escola, no primeiro ano, o aluno se dedica a encontrar a sua missão. “Eles devem se perguntar: O que eu quero fazer na vida? O que eu quero aprender? Qual é o meu propósito?”, diz. As respostas virão com estudos interdisciplinares. “Somos uma escola nova, começamos em 2020, temos pouco mais de três mil alunos, então não precisamos lidar com a herança de uma infraestrutura pronta, podemos experimentar”, explica.

Para Thwala, o líder do futuro é aquele que identifica sua missão, que é expert em tecnologia, especialista em uma determinada disciplina, mas que domina outras secundárias para saber onde irá buscar recursos. “Ele vai ser muito forte em empreendedorismo, mas acima de tudo vai buscar ser uma liderança ética. É esse líder que queremos formar.”

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